Há os que vão pelos bichos. E os que vão pelos pássaros. Os que vão pelas paisagens. E os que vão pela aventura. Os que lá nasceram e os que para lá se mudaram de almas e bagagens. O Pantanal cresce de forma diferente em cada um, mas entranha-se em todos.
1 – Era uma vez…
Crê-se que há muitas eras geológicas atrás esta região era de facto um mar que banhava o interior do território brasileiro, correndo do vale amazónico pela enorme calha do vale do Paraná até ao estuário actual do rio da Prata. Antônio de Pádua Bertelli, autor de Pantanal, o Mar de Xaraiés, retrata uma terra tão forte que foi capaz de expulsar o mar. Quando o continente, à deriva sobre placas tectónicas, colidiu com outras placas, deu origem à cordilheira dos Andes, e os vales Amazónico e Paraná também elevaram as suas terras, esvaziando o mar que ali existia.
O Pantanal, segundo esses estudos, é testemunho daquelas eras. O lugar tem aliciado o homem desde há pelo menos oito mil anos, muitos milénios antes da chegada, no século XVI, dos primeiros exploradores portugueses e espanhóis. A cultura pantaneira, como a conhecemos hoje, é filha dos bandeirantes paulistas que, no século XVIII vieram procurar ouro em Cuiabá (a capital do Mato Grosso) e acabaram a amanhar terra para enganar a pobreza depois de terminado o ciclo do ouro. É uma cultura prima dos índios e aparentada com os usos e costumes da cultura pastoril de paraguaios, argentinos e gaúchos. Os tempos conturbados da região não aconteceram na sua ocupação, que foi surpreendentemente tranquila, mas entre 1864 e 1870, quando o presidente paraguaio Francisco Solano López invadiu a província brasileira de Mato Grosso dando inicio à Guerra do Paraguai. Coube então à Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) expulsar o invasor.
2 – Raio X
Quem julga que o Pantanal é um conjunto de pântanos está completamente enganado. Na verdade, e cientificamente falando, é uma “planície alagável”, a maior do mundo, por sinal. A grande fatia do seu território fica no Brasil, nos estados de Mato Grosso do Sul (65%) e Mato Grosso (35%), mas os países vizinhos, Paraguai e Bolívia, também têm o seu quinhão de Pantanal, ainda que lhe chamem Chaco. Na verdade existem onze pantanais: o da Nhecolândia, o de Miranda, o de Aquiduana, o de Nabileque, o de Cáceres, o de Poconé, o de Barão de Melgaço, o de Paraguai, o de Paiaguás, o de Porto Murtinho e o de Abobral. Cada qual com sua característica especial. O da Nhecolândia, por exemplo, tem o maior número de baías, várias delas salobras, graças aos sais provenientes da vizinha serra da Bodoquena rica em calcário, e por isso chamadas de salinas; o de Nabileque é o que tem as maiores cheias, e o de Poconé, no norte, é o mais parecido com a Amazónia. Se em qualquer outra parte do globo o excesso de água é uma maldição, aqui é uma bênção. Ela dita o ritmo de vida do homem, dos bichos e das plantas e transforma cerca de 200 mil quilómetros quadrados – qualquer coisa como Bélgica, Portugal, Suíça e Holanda??? juntos – num santuário ecológico ímpar, já que o movimento intenso e imprevisível das águas dos rios, corixos (riachos permanentes) e vazantes (canais por onde a água escoa depois da cheia) torna difícil o crescimento desenfreado de cidades e dá sustento a uma miríade de seres de duas e quatro patas e alados. Aqui não chove mais do que na Amazónia, mas como o desnível dos terrenos é pouco acentuado o lugar inunda facilmente. O relevo também é brando e por isso o rio Paraguai corre bem devagar. Tão devagar que, a título de curiosidade, fique sabendo: uma canoa à deriva demoraria cerca de seis meses para o atravessar. É pois bem morosa a tarefa de escoar a maior parte da água.
3 – A metamorfose
Tal como um espirro é normalmente prelúdio de uma constipação, também as piúvias – ou ipês – floridas são sintomáticas da chegada da época seca. Esta e a época das cheias são as duas grandes estações do ano, intervaladas pela vazante (Abril a Junho) e pela enchente (Novembro a Dezembro). Quando o Pantanal começa a secar, o que ocorre a partir de Julho, nem toda a água se evapora ou escoa, por isso há uma parte considerável que fica acumulada em concavidades da planície, as lagoas, às quais os locais chamam baías. Com a água, ficam os peixes que não conseguiram voltar ao leito dos rios e que, mais cedo ou mais tarde, servirão de jantar a jacarés, ariranhas ou sucuris. As baías são também as responsáveis pelo maior rendez-vous selvagem do ano, funcionando como uma espécie de boteco onde a bicharada mata a sede e sossega o estômago. Na estação seca o observador de aves vai rejubilar. É que esta é a época de reprodução de grande parte das aves e por isso os bichos alados alinham a plumagem e afinam as vozes para o engate. Quando o coaxar das rãs se torna endurecedor é porque estamos entre Dezembro e Março. O Pantanal está alagado e ainda mais pictórico. Se gosta de ser arrebatado, tire o pé do chão, suba a bordo de um bimotor e contemple a paisagem a partir do ar. O pôr-do-sol mais bonito do ano acontece nesta altura, mas os animais andam mais escondidos no que resta de terra seca. Para os pescadores, esta não é uma boa época, é altura da piracema – quando os peixes estão a fazer bebés – e por isso a pesca é proibidíssima.
Por Maria Ana Ventura
Fonte: TAP Portugal